terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sonhos de um cidadão eleitor

Eleições democráticas, como estas em que hoje votamos com plenas garantias constitucionais asseguradas, sempre são um ápice civilizacional. Ápice do conflito mais intensamente renovador, nas lutas vitais da democracia. E ápice decisivo, porque dele resulta, e nele se materializa, o mais belo acordo de convivencia política entre as partes antagonistas: o acordo dentro do qual, ao se submeterem à decisão da vontade popular, os vencidos aceitam ser governados pelos vencedores.

Mas sem que desapareçam da cena política, porque lhes caberá o papel também essencial de ser oposição, com espaços próprios de atuação nos mecanismos do poder. E com direito as novas disputas nas eleições seguintes.

Confesso, porém, que o meu foi um voto cético. Não porque em quem votei possa ganhar ou perder nas urnas. Isso não tem grande importância, neste oceano difuso de mediocridade partidária em que somos obrigados a exercer o direito ao voto. Fui um eleitor cético, sim, mas por acreditar que precisamos bem mais do que urnas livres e invioláveis para dar sentido e valor político ao nosso voto.

Precisamos de sonhos. E de práticas democráticas que os realizem.

Por enquanto, como eleitor, e quaisquer que tenham sido ou venham a ser os eleitos e os derrotados, não enxergo razões para acreditar em avanços que saiam das urnas. Como cidadão, porém, acredito em sonhos e na obrigação de tê-los.

E sonhar é preciso, porque, sob vários pontos de vista, esta campanha eleitoral foi uma lástima.

Tivemos um Presidente da República que mandou às favas a dignidade do cargo, para se entregar, quase em tempo integral, ao papel de cabo eleitoral desbocado, com adesão a baixarias comuns de palanque.

Tivemos candidatos aos mais importantes cargos da governação sem uma proposta consistente de Nação a construir. Portanto, sem programas confiáveis de governo.

Como grande fato eleitoral, tivemos a revelação de uma trama real de corrupção e clientelismo nos espaços de poder da própria Presidência da República. E sem manifestações de indignação, nem oficiosas nem oficiais.

Tivemos uma atuação jornalística que, em alguns momentos e em alguns veículos, assumiu despropositado e desonesto tom de campanha  - ainda que, no caso das denúncias, trabalhando com informações provavelmente verdadeiras (e esse é um assunto que merecerá outro texto).

E tivemos Tiririca, Maguila, Mulher Pera, Mulher Melancia, Mulher Morango, entre numerosas caricaturas grotescas postulando votos com táticas de deboche.

Ainda assim, tenho pelo menos quatro grandes sonhos de cidadão. Sonhos que não coloquei na urna, mas que abro aqui, aos que partilham este meu tão pequeno e ao mesmo tempo tão amplo mundo de fluxos em que navego, como blogueiro:

1 – O sonho de termos um Presidente da República que o seja de todos os brasileiros e em todos os momentos. Um Presidente da República com sabedoria e grandeza para elaborar conciliações éticas (isto é, sustentadas em valores, não em objetivos partidários) entre os deveres republicanos de Chefe de Estado e as ações de chefe do Governo.

2 – O sonho de termos no Brasil um governo que assuma como seus, e do partido ou das coligações que represente, os objetivos que a Constituição lhe impõe, de construir uma sociedade livre , justa e solidária; de garantir o desenvolvimento nacional; de erradicar a pobreza e a marginalização; de promover o bem de todos (e não apenas de alguns, os apadrinhados), sem preconceitos e sem discriminações. Por decorrência, um governo que não pratique nem tolere a corrupção (inclusive a “legal”), o nepotismo, o empreguismo, o tráfico de influência e gigantesco elenco de mordomias imorais; e que elimine a prática de gastar dinheiro público, aos milhões, em propaganda institucional que, servindo apenas aos projetos partidários ou pessoais de poder, engana deliberadamente os cidadãos brasileiros, impingindo-lhes uma realidade sem problemas, sem carências, sem injustiças, sem exclusões, sem falhas administrativas e sem desonestidades.

3 – O sonho de termos, nos cenários políticos, oposições democráticas fortes e idealistas, com lideranças igualmente fortes e idealistas, protegidas pelos direitos constitucionais de existir, pelo zelo republicano do Presidente da República e pela representatividade de segmentos da sociedade manifestados nas votações eleitorais.

4 – Sonho de termos meios jornalísticos que assumam formalmente compromissos éticos, os divulguem, os assumam como marcas de identidade e os imponham, como razão de ser, às respectivas linhas e ações editoriais.

Sei que é sonhar muito.

Mas agora, mesmo tendo já depositado na urna o meu voto cético, não resisto a perguntar: para quê e por quê votar, se não pudermos sonhar?



Por Manuel Carlos Chaparro. Doutor em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Grande jornalista, desde 1957.

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